21 de mai. de 2008

Cenário.

Havia algo de mais seriamente profundo naquela sala de estar. Nos cristais, nos três sofás desgastados, na mesa tabaco, mesa preta. Nas paredes brancas que em sua palidez opaca assumiam a amarelidão da lâmpada - três lâmpadas pouco potentes, coisa de 60 watts sendo uma sempre apagada. Até mesmo na rachadura que tomava a parte lateral de uma das 6 paredes da sala - isso porque as salas podem e devem ter mais de 4 paredes. Uma delas, redonda, inclusive; Outra com uma janela enorme, com vistas para todo o céu que for possível enxergar sob a poluição metropolitana. Outra em branco, vazia, enorme, de frente para a outra que era semi-ocultada.

A rachadura ficava na parte lateral de uma das 6 paredes da sala, cortando suavemente sua cobertura, expondo parte do concreto e um fino vão que dá para a escada de acesso à entrada. A entrada ficava na redonda, de frente para uma também vazia e imensa e branca parede, com algumas marcas de pés e mãos e gordura. O vidro da janela tinha um quebradinho e também uma rachadura, como se isso fosse expressão de algo mais que a coincidência.

Os sofás que eram três eram três e três diferentes. Dois tinham tentado que fossem iguais, mas na quase falta de dessemelhança tinham optado por aqueles mesmos. Cada um junto a cada uma das paredes retas. Faltaram três sofás ou sobraram três paredes? Uma era redonda, outra era curta, na outra estava a estante, também tabaco, também desgastada.

Na parede do sofá quadriculado em laranja e bege desbotados tinha um gancho um pouco enferrujado, um pouco brilhante, um pouco branco da tinta da parede que desgastou e pousou ali. A parede da janela também tinha um gancho e este também era um pouco enferrujado, brilhante, branco pousado. Embaixo-em frente da janela estava o sofá encarnado, desbotado do sol que nem batia nele. Cortina não tinha, mas o varão estava sobre a janela, suportado pelas duas extremidades enquanto no centro estavam os furos, estavam os parafusos, mas o apoio de madeira não.

Uma caixa destampada no chão nada continha e nada conteve, mas estava ali e ali ficaria. Ao seu lado, uma bola por criança nunca jogada, isso já ao pé do terceiro sofá: azul com flores franco-reais estampadas na malha grossa. Pela ação do tempo tanto ele quanto o manto que o cobria - com motivos listrado-jamaicanos - eram um maciço de linhas e espuma laranja desfiadas. O manto era o motivo dos ganchos - já foi uma rede.

A pilha de revistas de decoração ao lado do sofá demonstrava uma intenção, mas essas mesmas de velhas já tinham orelhas, manchas e a impressão escurecida, ou clareada. O próprio chão - madeira - tinha alguns tacos soltos, nos cantos dos quais pulavam um e outro pedacinho da construção. A madeira riscada e também manchada. No canto do batente da porta uns pregos prendiam a madeira à parede, e lá estava metade da trava de segurança - a outra quebrou. Acima uma lâmpada que nunca acendia e, a seu lado, a campainha que nunca cantou.

Sobre a mesa outra caixa, menor, de papel mais tosco, com inscrições estrangeiras. Essa fechada e posta de lado. A seu lado um telefone. Uma caneta. Um papel: algo anotado. Um número de telefone, uma seta, um nome, muitas estrelas, muitas espirais, letras perdidas. Em frente à mesa uma cadeira de couro marrom e metal, giratória. Seu couro com cantos comidos, costuras pretas do tempo e rangido no metal ao girar parecia nunca ter servido assento a pessoa qualquer.

Da fresta entre as folhas da janela vento fresco corria para se juntar ao que vinha sob a porta. Bolinhas de poeira se juntavam em uma dança tribal, até que a brisa cessou e permitiu assentarem de novo, tranqüilamente, entre os tacos e as folhas da pilha de revistas.

Havia ainda algo mais.

Deveria haver algo mais.

Mas tudo ao redor era branco de uma amarelidão opaca e desgastada, rachaduras e frestas.

- Continua -

Um comentário:

Anônimo disse...

Amei!
Lindo, lindo... e aguardo o "continua"
bjos